ARTIGOS

TEMAS POLÊMICOS SOBRE A ATUAÇÃO DAS ENTIDADES RELIGIOSAS

TEMÁTICA:

Adequar as organizações religiosas e do terceiro setor à legislação tem sido um grande desafio e tem gerado dúvidas devido à falta de orientação adequada.

Diante deste quadro, o presente estudo, quase informal, decorre de experiências práticas nestes 14 (quatorze) anos em que nosso escritório assessora tais entidades, especialmente católicas.

BREVE HISTÓRICO DA PRÁTICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL:

Como militante na defesa dos direitos de Organizações Religiosas e suas Associações, interessante trazer um breve histórico da prática da assistência social pelos religiosos.

Conforme relatos bíblicos, a “assistência social” era praticada e recomendada. Cristo curava as pessoas, foram muitos os milagres, inclusive a cura da lepra, principal moléstia da época e além do mais, tratava com carinho aos pobres e não fazia acepção de pessoas.

A história traz que os serviços assistenciais (caridade) sempre foram praticados pelas Ordens e Congregações religiosas em todos os tempos, sendo que o primeiro Hospital do Brasil surgiu em novembro de 1543, a Santa Casa de Misericórdia de Santos.

Podemos dizer que os religiosos que deram a partida e que o poder estatal criou políticas assistenciais regulamentando todo este trabalho (a partir de 1930 e firmados na Constituição Federal de 1988), porém, em razão da grande demanda o Estado não tem como garantir plenamente tais direitos à população e se vale da ajuda dos religiosos e OSCs para tanto.

Não somente os católicos possuem tais ações, mas outros segmentos religiosos, quer protestantes, espíritas e outros, através de suas diversas denominações e dentre elas, destacamos algumas, como a ADRA, LBV, Instituto Ressoar, Cristolândia, Casas André Luiz, e muitas outras.

AS ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS FAZEM PARTE DO TERCEIRO SETOR?

Esta sempre foi uma indagação e motivo de polêmica, mas as organizações religiosas (art. 44 IV, § 1º do Código Civil) que mantém atividades sociais, fazem sim parte do Terceiro Setor desde que atuem em serviços de interesse público e responsabilidade social.

Porém, a “pura” organização religiosa, (Congregações, Institutos, Províncias, Delegações, Paróquias, Igrejas, etc.), que só trata da vida religiosa, há de se entender que não fazem parte do Terceiro Setor.

Pelas dificuldades, anteriores a previsão do Código Civil, algumas se organizaram em associações (art. 44 I e 53 do CCB), já que somente após a promulgação da Lei 10.825 de 2003, (!) que houve a regulamentação das Organizações Religiosas, com a previsão no Código Civil Brasileiro:

I – Da Organização Religiosa: conceito, natureza jurídica e registro: É considerada organização religiosa, espécie do gênero pessoa jurídica de direito privado, conforme alteração do art. 44 do Código Civil levada a efeito pela Lei 10.825, de 22 de dezembro de 2003, publicada no Diário Oficial da União – Seção 1 – do dia 23 subsequente.

ALGUMAS DIFICULDADES: GOVERNANÇA 

Com a constante normatização os religiosos tiveram que se adequar a legislação, porém, em razão da própria vida religiosa, se deparam com algumas dificuldades, dentre elas:

  1. Não dissociar o civil do código canônico;
  2. Manter as regras de vida e o Direito Próprio;
  3. Entidades formais, com Estatuto Social, CNPJ, licenças, alvarás, empregados;
  4. Congregação e obra social, como conviver, já que as contas devem ser separadas;

Antes da previsão no Código Civil, eram obrigadas a se constituir sob a forma de sociedade religiosa ou associação religiosa ou confessional, mas também com as seguintes dificuldades:

  1. Manter uma só Personalidade Jurídica – fundação de uma nova ou mesmo a cisão;
  2. Formalização do segmento religioso, com Estatuto Social e CNPJ próprio;
  3. Formalização do segmento assistencial, com Estatuto Social e CNPJ próprio;

Com isso, a grande maioria mantém duas personalidades jurídicas o que ocasiona dificuldades em manter caixas separados, pois há a confusão de valores utilizados nas obras assistenciais com os da subsistência, fato que pode influenciar nas prestações de contas.

Além disso, os religiosos se deparam com vasta legislação e não estão preparados, seus membros possuem parco conhecimento da legislação, agravados pelo fato da Diretoria e Conselho Fiscal serem compostos por pessoas não preparadas e muitas vezes assessorados por uma contabilidade não especializada, sendo a situação ainda agravada pois não investem em assessoria especializada, (gestores, assistente social, advogado, contador, auditoria, administração imobiliária…);

OUTROS PONTOS DE DIFICULDADES:

Apesar da melhoria do quadro, ainda, são averiguados outros pontos de dificuldades:

  1. Estatutos desatualizados e inadequados e não trazem a área de atuação de forma clara;
  2. CNAE não exprime a área de atuação;
  3. Trabalho voluntário “informal”;
  4. Práticas trabalhistas incorretas.

Hoje já se verifica uma grande melhora nos quadros acima descritos, já que inclusive as entidades de menor porte estão se conscientizando da necessidade da profissionalização dos processos e investem tanto na formação de seus membros e na assessoria especializada ou mesmo na contratação de gestores e empregados especializados.

DIFICULDADES COM CONSELHOS MUNICIPAIS/ESTADUAIS:

Tais dificuldades de caracterizam em razão dos Conselhos que não concordavam com a menção de religião, qualquer que seja, no Estatuto Social, com a alegação que “entidade religiosa” não pode ser certificada, já que as atividades não se coadunam com o princípio da universalidade, e os membros são os principais favorecidos.  Além disso, tinham o pensamento de que não se pode ensinar religião aos orientados.

Entendiam também, que denominações como Província, Congregação, Instituto, não são adequadas para fins de razão social e para culminar, haviam questionamentos quanto a moradia dos religiosos, que afirmavam não poderia ocorrer no mesmo local da prestação dos serviços.

Parte deste entendimento procedia de resolução emanada do CNAS:

Em conformidade com o parágrafo único do art. 1° da Resolução CNAS n°191/2005:

 “Não se caracterizam como entidades e organizações de assistência social as entidades religiosas, templos, clubes esportivos, partidos políticos, grêmios estudantis, sindicatos, e associações que visem somente ao benefício de seus associados que dirigem suas atividades a público restrito, categoria ou classe”.

Porém a situação foi devidamente esclarecida pelo CNAS, que afirmou que “em relação às associações que possuem como objetivo estatutário a assistência social, inclusive as formadas por religiosos, nada impede a sua classificação como entidades de assistência social”. 

Diante disso, podemos afirmar que as entidades religiosas, por si só, não são entidades de assistência social, todavia, aquelas que desenvolvem tais atividades assistenciais, deverão estar inscritas em Conselho apropriado e seguir a legislação.

ACORDO BRASIL SANTA SÉ (DECRETO 7.107/2010 DE 11/02/2010)

Em 2010, foi promulgado o Acordo Brasil Santa Sé, visando regulamentar diversas previsões que podemos dizer que já existiam, mas que se encontravam esparsas, sendo que este acordo buscou reuni-las.

Esta lei aborda o relacionamento diplomático, liberdade religiosa, ensino religioso (facultativo nas Escolas), direito à missão apostólica, a assistência espiritual em instituições de saúde e penitenciárias, a personalidade jurídica das instituições eclesiásticas, a integração ao patrimônio histórico, cultural e artístico, a sede episcopal, o segredo confessional, os efeitos civis do matrimônio religiosos e de sua anulação, a imunidade fiscal, a filantropia, o labor humanitário. (José Francisco Rezek, Acordo Brasil Santa Sé Comentado, LTR).

IMUNIDADES (ACORDO BRASIL SANTA SÉ):

Outro dilema que sempre rondou as organizações religiosas é a imunidade tributária, porém, o Acordo trouxe luz ao assunto, conforme se verifica nos artigos abaixo:

Art. 5º- As pessoas jurídicas eclesiásticas, reconhecidas nos termos do Artigo 3º, que, além de fins religiosos, persigam fins de assistência e solidariedade social, desenvolverão a própria atividade e gozarão de todos os direitos, imunidades, isenções e benefícios atribuídos às entidades com fins de natureza semelhante previstos no ordenamento jurídico brasileiro, desde que observados os requisitos e obrigações exigidos pela legislação brasileira.

“Art. 15. Às pessoas jurídicas eclesiásticas, assim como ao patrimônio, renda e serviços relacionados com as suas finalidades essenciais, é reconhecida a garantia de imunidade tributária referente aos impostos, em conformidade com a Constituição brasileira

  • 1º. Para fins tributários, as pessoas jurídicas da Igreja Católica que exerçam atividade social e educacional sem finalidade lucrativa receberão o mesmo tratamento e benefícios outorgados às entidades filantrópicas reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, inclusive, em termos de requisitos e obrigações exigidos para fins de imunidade e isenção.

Portanto, conforme o prescrito nos artigos acima, não basta ter a denominação de organização religiosa ou ainda um estatuto social que menciona se tratar de entidade sem finalidades econômicas, e daí simplesmente deixar de recolher o IPTU, IPVA, ICMS, Imposto de Renda e outros tributos, mas tudo necessita ser devidamente comprovado, quer documentalmente, quer pelas atividades desenvolvidas.

PODEM OU NÃO POSSUIR O CEBAS E/OU OUTRAS CERTIFICAÇÕES?

Tal situação também foi esclarecida, ou seja, desde que seja seguido o prescrito na legislação, (Lei: 12.101/2009) a organização religiosa pode ser certificada, inclusive com o CEBAS, mas nas seguintes condições:

  1. Constituir uma Associação que atue em uma das três áreas, com CNPJ e Estatuto distintos da Organização Religiosa;
  2. Organização Religiosa, mas que possua atuação em uma das três áreas: (assistência social, educação e saúde)

Percebe-se que hoje esta questão já é melhor compreendida, porém, ainda restam dúvidas quanto a área de atuação, (creches, abrigos, clínicas de repouso e recuperação, centro educativo, atividades socioeducativas, etc), onde cada um se encaixa? São geradas inconsistências e consequentes exigências difíceis de serem atendidas.

Exemplificando: Relatórios contábeis, sob rubricas empresariais, ou seja, inadequados a este tipo de atuação, dificuldades na segregação dos projetos, Notas explicativas e demais relatórios inconsistentes;

Em razão das dificuldades, custos, muitas Organizações Religiosas optam em não buscar o CEBAS.

AS ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS ESTÃO ABRANGIDAS PELA LEI 13.019/2014?

Pode ser que surjam dúvidas quanto a atuação das OR, porém, a lei é clara:

Art. 2o Para os fins desta Lei, considera-se:

  1. c) as organizações religiosas que se dediquem a atividades ou a projetos de interesse público e de cunho social distintas das destinadas a fins exclusivamente religiosos; (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)

Conceituação: Pessoa Jurídica de direito privado que mantenha atividades ou projetos de interesse social diversa do interesse religioso com enquadramento específico no CNAE, mas que preste serviços de interesse público, que vão além da igreja, ou seja, além dos assuntos voltados somente à religião e espiritualidade.

Conclui-se que as organizações religiosas estão aptas para a celebração do Termo de Colaboração, Fomento e Acordo de Cooperação.

PROBLEMA PRÁTICO – ALTERAÇÃO ESTATUTÁRIA:

Está mais do que claro que as Organizações Religiosas podem desenvolver atividades assistenciais, porém, não têm sido esse o entendimento dos Cartórios de Registro de Títulos e Documentos de São Paulo, que estão indeferindo as alterações estatutárias, que preveem atividades além das espirituais e/ou religiosas.

Vejam recente entendimento de um Cartório, exarado através de Nota de Devolução:

“As organizações religiosas devem possuir em seus objetivos e finalidades sociais apenas questões ligadas às atividades espirituais e/ou religiosas. Conforme decisões dadas nos processos 583.00.2007.155420-5 e 0015547-23.2013.8.26.0100 pela 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo e 2013/0014774 da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, essas entidades não podem exercer atividade social mista ou híbrida…”

Em contato com o escrevente, este informou que estas situações, em decorrência da lei 13019/2014 e 13204/2015, foram encaminhadas à Corregedoria Geral, mas que ainda se aguarda um parecer. Porém, recomendou esperar, mas que em caso de alteração estatutária, hoje, ainda será indeferida.

Diante desta situação, um Grupo de Trabalho foi formado por membros da Comissão do Direito do Terceiro Setor da OAB/SP buscando elaborar parecer sobre o assunto, tendo se chegado a algumas conclusões iniciais:

  1. Confusão ao misturar a personalidade jurídica da OR com suas finalidades, gerando interpretação equivocada do Acordo Brasil-Santa Sé;
  2. De acordo com o Código Civil, as OR podem ter finalidades mistas e direito aos benefícios da isenção e imunidade (problema tributário);
  3. Organização Religiosa = Instituições Eclesiásticas;
  4. Associação religiosa ≠ Organização religiosa;
  5. As normas devem ser extensivas a todas as denominações religiosas.

Mais estudos serão realizados para a elaboração de parecer.

CONCLUSÃO

Muitas são as dificuldades enfrentadas pelas Organizações Religiosas, como o todo acima relatado, situação que somente poderá ser mudada mediante uma governança atuante e que esteja disposta a entender e a enfrentar esta floresta de legislação, burocracia, exigências e ainda manter suas tradições religiosas e claro, sempre contando com uma assessoria especializada.

 

Dalmo Oliveira Rodrigues:  Advogado militante, especialista em Terceiro Setor, sócio da Andersen e Rodrigues Sociedade de Advogados, com experiência de 14 anos na assessoria a organizações religiosas e associações, membro efetivo da Comissão do Terceiro Setor da OAB/SP